EDITORIAL
Quinta, dia 03 de maio havia uma audiência pública. Não Houve. Na porta da reitoria havia grades. Caíram. Dentro o coletivo. Todas suas belezas e suas dificuldades. Tudo é vivo, Autogerido. Transitam por aqui centenas e centenas de estudantes que se incorporam ao coletivo de organização e criação. Por outro lado as eternas disputas entre grupos e partidos e a afirmação dos Independentes. A Organização. Comissão de limpeza! Comissão de comunicação e imprensa! Comissão de alimentação! Comissão de negociação! Comissão de segurança! Comissão de cultura! E mais... Revirada cultural! Rádio várzea da ocupação (106,7)! Redecoração do ambiente com últimas notícias, moções de apoio, crafts com incentivos! Aulas públicas! Alguém diz: “devíamos ficar aqui pra sempre” Pode ser que de nada adiante, pode ser que nada se conquiste, pode ser que os decretos irrompam o sucateamento. Dizem sermos violentos, mimados, “remelentos”, burros, intransigentes. E de repente, numa segunda-feira a noite, chegam a ocupação 15 professores. Sentam do lado de fora e são cercados por cerca de 1.000 ALUNOS atentos !. Tomam a palavra: “A ocupação é SIM legítima” “Todas as conquistas na democracia foram conquistadas pela rebelião” “É emocionante ver o que vocês estão fazendo aqui” “Não podemos ficar parados, e vocês são a vanguarda da movimentação!” “O prédio está muito mais bonito agora” .... e em uníssono: “ESTAMOS COM VOCÊS!” Sorrisos, lágrimas .. a noite se ilumina de esperança. Eu acredito.
A refeição é um convite a refletir
Até onde vai a liberdade do homem? Era o que todos se perguntavam quando, em 2001, estourou o escândalo do alemão Armin Meiwes, que matou e devorou o corpo de Bernd Jürgen Brandes, que havia conhecido pela internet. A própria vítima lhe pediu para que amputasse seu pênis – para que os dois comessem juntos – e depois o matasse. Assim aconteceu, com o pleno consentimento de Brandes. O caso, com a conseguinte condenação de Meiwes, chocou e dividiu o mundo. Embora para muitos tenha sido um ato de extrema brutalidade, alguns consideraram um direito dos dois fazer o que quisessem com seus corpos. Desvio mental ou não, há os que defendem a liberdade irrestrita no que diz respeito à matéria física de cada ser humano, seja com uso de drogas ou com taras consideradas anômalas, como a coprofilia.
É justamente o canibalismo que está em pauta em A refeição, de Newton Moreno. Mostrando como a antropofagia pode ser vista com estranheza ou de forma natural, de acordo com as diferentes culturas, a obra faz um retrato profundo de diferentes sociedades, bem como de complexos psicologismos dos personagens, relacionando-os à sua inserção ou exclusão delas. Sem preconceitos ou julgamentos, se embrenha nas motivações de cada um que comete o ato em questão. A obra é composta de três peças curtas, ou movimentos, que trazem diferentes visões sobre o tema. A direção de Denise Weinberg, prezando pelo minimalismo, relaciona-as pelo ponto de vista da evolução humana, sem tratar o assunto como regresso ao primitivismo, como é comumente abordado.
O primeiro movimento mostra um casal perturbado, tentando entender o que aconteceu há pouco. Após anos de uma convivência dita normal, o marido pediu um pedaço da esposa e, tendo o seu consentimento, comeu alguns de seus dedos. Parecendo para eles mesmos um lampejo de loucura, debatem sobre desdobramentos que houve e ainda haverá do ocorrido, como problemas com a polícia e julgamentos alheios. Tendo que enfrentar, primordialmente, o próprio preconceito, a tensão constante e o desencontro entre eles são retratados por uma cena que dispõe apenas de duas cadeiras e da interpretação de Marat Descartes e Luah Guimarães, que percorrem meticulosamente diversos estados psicológicos de seus personagens, buscando a delicadeza de quem está fazendo um esforço descomunal para entender a si mesmo e ao outro. Em pé, quase parados, ou nas cadeiras, com sutis guinadas, sempre mantendo certa distância um do outro, eles conduzem a trama, cujo desfecho mostra, de uma forma surpreendente, uma possível aceitação deles mesmos para com o instinto que demonstram ter.
A segunda história mostra um homem de uma família abastada que na adolescência, por influência de amigos, passou a sodomizar moradores de rua, dando-lhes, em troca, um parco dinheiro. No momento retratado, ele conta sua vida para um mendigo, dizendo ser este o primeiro por quem verdadeiramente se apaixonou. Plínio Soares, enrolado em um cobertor, quebra o que poderia ser um monólogo, fazendo papel quase de objeto, a serviço das ações físicas do “playboy”, que mostra um Marat Descartes agressivo, com traços de loucura, completamente diferente do movimento anterior, mas tão minuciosamente trabalhado quanto. Ao fim da declaração, depois de ter demonstrado várias vezes uma obsessão por sujeira, o protagonista pede ao sodomizado qualquer um de seus pedaços mais sujos. Instaura-se uma expectativa pela reação, que é rapidamente rompida por uma solução que espanta por um imediatismo que imprime caráter corriqueiro ao que parece a todos algo extraordinário.
Na terceira pequena peça, uma antropóloga registra num gravador as últimas palavras de um índio moribundo, último representante de uma tribo extinta, para que dela fique alguma memória documentada. Falando da cultura de seu povo e de seu contato com os brancos, o índio nos imerge no seu universo, como uma preparação para o que vem a seguir, quando ele pede para que a antropóloga, em troca das palavras que ele está dando, coma-o quando ele morrer. Diz que, sendo esta uma velha cultura da tribo, é necessário que ele continue vivendo em outro corpo para, assim, não deixar seu povo morrer completamente. A estudiosa recebe o fato com estranheza e hesita em cumpri-lo. Neste movimento, o mais minimalista dos três, Plínio Soares e Luah Guimarães quase não têm movimentações, segurando a tensão dramática em suas interpretações. A atriz também apresenta um trabalho camaleônico em relação à primeira cena, trazendo, desta vez, um maior desconforto e indignação frente à proposta feita, com uma maior convicção interior da personagem, que a leva à exaltação.
Quando o público entra no teatro, a encenação já se assume explicitamente teatral, abstendo-se das habituais pernas (panos que ficam nas laterais do palco para esconder os bastidores) e mostrando painéis abaixados ao nível do palco. Os interlúdios, costurando as três peças, também deixam visível ao público a troca de figurinos e de objetos de cena, além de serem os únicos momentos do espetáculo em que há música, acompanhada em alguns momentos por algum ator dançando. Para cada movimento, levanta-se um painel, sempre maior do que o do movimento anterior, gerando uma idéia de evolução. Esta mesma idéia é expressa na cena final, após a última peça, que, embora simples, mostra-se como auge plástico do espetáculo, trazendo um grande impacto como síntese da concepção, fazendo-se chave de toda a montagem.
A seqüência dos movimentos pode ser vista de diversas formas, mas é interessante pensar no que parece ser a linha adotada pela direção: de que ela apresenta um crescimento, uma evolução. Para isso, é necessário considerar a aceitação dos personagens para com o próprio ato antropofágico e sua função. Na primeira peça, o casal ainda tenta aceitar o ocorrido. Na segunda, o “playboy” e o mendigo parecem convictos do que fazem, embora a relação entre eles e os métodos de persuasão do protagonista sejam questionáveis. Na terceira, uma filosofia cultural leva o índio a fazer seu pedido e a antropóloga a tentar entender a dimensão disto. Pode ser compreendido como o amadurecimento máximo da relação canibal.
A refeição é um espetáculo panorâmico, que possibilita múltiplas leituras e diversas reflexões, que vão desde o preconceito até a noção de liberdade. Uma obra inquieta, que não deixa ninguém impune, transformando consideravelmente o espectador, mexendo com quaisquer conceitos pré-estabelecidos que ele possa ter e fazendo-o pensar profundamente sobre si mesmo e sobre a sociedade em que vive. Uma montagem extremamente coerente, que faz jus a toda a contundência do texto.
Por Eric Rieser
2 comentários:
Endosso e boto fé.
Preciso urgente do contato de Alma Mater.
No aguardo.
Obrigado.
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